“Volta
para a selva, seu negro macaco, ladrão, safado, imundo. Temos que
matar todos, seus negros sujos. Márcio Chagas, tu é a escória do
mundo, seu lixo, mal intencionado.” Assim o juiz de futebol Márcio
Chagas da Silva foi ‘recepcionado’ num jogo de futebol em Bento
Gonçalves, Rio Grande do Sul. O jogador Arouca do Santos também
sofreu ofensas racistas em Mogi Mirim, São Paulo, assim como o
jogador Tinga, em jogo do Cruzeiro de Minas no Peru.
O
racismo no Brasil, explícito ou disfarçado, não é nenhuma
novidade. Assim como o preconceito. E muitas vezes se expressa em
horas de comoção, quando não se consegue reprimir os sentimentos,
ou em meio a multidões, onde os personagens se escondem no meio de
outras pessoas. A escravidão brasileira, a mais longa de todas as
escravidões, a que acabou mais tarde (pelo menos a formal e
pública), deixou marcas profundas, encravadas na sociedade, na
convivência diária, nas relações humanas e sociais. Como disse o
jogador Tinga: “Preconceito é coisa que vivo em todos os momentos.
É geral, e não é só o meu caso. Para quem nasce pobre, como eu, e
negro, o maior preconceito é o social. A minha esposa é branca e é
casada comigo há 18 anos. As pessoas olham para ela e olham para mim
de um jeito diferente. No Brasil, a gente fala de igualdade, mas
esconde o preconceito. A gente fica fingindo que todos são iguais.”
A
Campanha da Fraternidade/2014, promovida pela Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) e igrejas cristãs na quaresma, tem muito
a ver com estas manifestações racistas e preconceituosas em
estádios e é absolutamente oportuna. Seu título é ‘Fraternidade
e Tráfico Humano’ e seu lema ‘É para a liberdade que Cristo nos
libertou’(Gl, 5,1).
E há
uma feliz coincidência. O filme vencedor do Oscar/2014 é ‘12 anos
de escravidão’, contando a história de Soloman Northup, um negro
livre sequestrado nos Estados Unidos em 1841. Vendido como escravo,
Soloman é obrigado a trabalhar durante 12 anos nas plantações do
Estado de Louisiana. Soloman não era escravo. Era homem livre como
os demais brancos. Sabia ler e escrever, coisa que muitos brancos na
época não sabiam. Não realizava trabalhos braçais como os
escravos, era músico profissional. Mesmo assim, foi raptado e
vendido como escravo, do mesmo jeito que os demais africanos que
vinham para os EUA como escravos.
O
texto-base da Campanha da Fraternidade diz: “A sociedade
escravocrata legou ao Brasil, pós Lei Áurea, uma estrutura que
relega grande parte da população ao sofrimento da marginalização.
(...) O combate a preconceitos e à discriminação nas mais variadas
esferas deve integrar as ações de enfrentamento ao tráfico humano,
pois eles dificultam o empenho de maior número de pessoas e
organizações na superação desse crime.”
O
tráfico humano, em 2014, pleno século XXI, não é um problema
menor. Para o papa Francisco, o tráfico de pessoas é uma atividade
ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem
civilizadas. Ele aparece e acontece através da exploração no
trabalho – trabalhadores bolivianos e peruanos -, no tráfico para
a exploração sexual – não só mulheres, também homens -, para a
extração de órgãos, tráfico de crianças e adolescentes –
roubo e venda de crianças para serem adotadas. Segundo disse D.
Leonardo Steiner, Secretário Geral da CNBB, no lançamento da
Campanha, estima-se que o tráfico humano envolva R$ 65 bilhões por
ano.
Racismo, preconceitos, assim como o tráfico humano, não são,
portanto, coisas do passado ou resíduos de uma sociedade colonial.
Lúcio Centeno, do Levante Popular da Juventude e da Rede de Educação
Cidadã, escreve em ‘Acordando no Alabama dos anos 50’: “Na
sociedade brasileira recorrentemente emergem fatos que questionam a
existência de uma igualdade jurídica entre brancos e negros, para
não falar em uma igualdade ontológica (entre ‘humanos’ e
‘subhumanos – ou macacos, grifo meu, como gritam e cantam
torcedores nos estádios). As reiteradas denúncias de existência de
trabalhadores vivendo ainda em situação análoga à escravidão são
o exemplo mais óbvio dessa diferenciação. O caso do
desaparecimento do pedreiro Amarildo no Rio de Janeiro tornou-se
símbolo de uma prática policial bastante difundida nas periferias
brasileiras, o tribunal de rua. Nestes 126 anos de abolição da
escravidão, o processo de estratificação social se complexificou
cada vez mais. O desenvolvimento capitalista em nosso país não
suplantou uma estrutura social racializada. Pelo contrário,
acoplou-se nela para enrijecer-se.”
O
jogador Arouca disse belas palavras: “Tenho muito orgulho da minha
origem africana, que o sujeito tentou usar para me ofender, dizendo
que devo procurar alguma seleção da África, dando a entender que
um negro não serve para defender o Brasil. Como se algumas das
páginas mais bonitas da nossa seleção não tivessem sido escritas
por negros como Leônidas, Pelé e Romário.”
Em tempos de Copa do Mundo, a Campanha da Fraternidade nos chama a
atenção que o ser humano é destinado à liberdade. Não é
mercadoria. É irmã. É irmão.
Selvino Heck
Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República
Em catorze de março de dois mil e catorze
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