sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

“Não podemos aceitar, sem indignação, tanta desigualdade social como há no Brasil”

Quem diz isso é Frei Betto, escritor, teólogo, educador, escolhido por um júri internacional para receber o prêmio José Martí de 2013, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “Frei Betto foi escolhido por sua oposição a todas as formas de discriminação, injustiça e exclusão e por sua promoção da cultura de paz e dos direitos humanos”, explicou a organização. O prêmio será entregue no dia 30 de janeiro, em Havana, na Terceira Conferência Internacional pelo Equilíbrio Mundial, que marca o 160° aniversário do combatente da independência cubana e poeta da libertação latino-americana, José Martí.

Nesta entrevista ao Portal Minas Livre, Frei Betto, autor de mais 50 livros de diversos temas, mineiro de Belo Horizonte, fala sobre Igreja, comunicação, as lutas e desafios do continente.


Portal Minas Livre: Qual a importância de um prêmio como o da Unesco, que resgata o pensamento de José Martí e valoriza pessoas que seguem seu legado? Como é para o senhor recebê-lo neste ano?
Frei Betto: O mérito é de todos que lutamos por justiça, paz e direitos humanos na América Latina. Sou apenas um pequeno grão de imensa praia que converge rumo ao futuro melhor de nosso continente.

ML: O senhor conheceu de perto diversas experiências de construção do socialismo, e atuou ativamente em um momento de ascenso da luta popular. Qual perspectiva o senhor vê hoje para retomar essa mobilização engajada? Há no horizonte da América Latina a possibilidade do socialismo?
FB: O horizonte de toda pessoa generosa e altruísta tem que ser o de uma humanidade constituída em uma só família, sem preconceitos e discriminações, sem desigualdade e injustiças. Se isso vai chamar socialismo ou outro ismo, não me importa. Importa que não podemos aceitar, sem indignação, tanta desigualdade social como há no Brasil e no mundo. O engajamento dos jovens nesse processo é fundamental. Não conheço nenhum revolucionário que tenha iniciado sua luta após os 30 anos. E estou convencido: quando mais utopia, menos drogas; quanto menos utopia, mais drogas. O que não dá é viver sem sonhos...

ML: Como intelectual, assessor e militante, na sua opinião quais seriam as principais lutas que as forças progressistas desse país deveriam centrar seus esforços e se unir em torno delas?
FB: A principal é a reforma agrária. Seguida da educação e da saúde. O Brasil não terá futuro sem mexer na sua estrutura fundiária e sem promover uma verdadeira revolução na educação e na saúde.

ML: A partir de sua experiência no primeiro governo Lula e de suas observações desde então, como o senhor vê o recente estudo da Cebrap que conclui que houve redução na miséria no Brasil, mas ainda somos um dos países mais desiguais do mundo?
FB: É um fato. É a chamada Belíndia - o Brasil é um misto de Bélgica e Índia. Sem educação e melhor qualificação de nossa mão de obra não conseguiremos reduzir essa desigualdade gritante.

ML: O senhor é articulista de alguns jornais da imprensa comercial, mantendo uma postura crítica nesses espaços. Como vê hoje a atuação da mídia na construção de um projeto de sociedade? Qual o papel da imprensa popular nessa disputa?
FB: A imprensa popular tem que criar e alargar seu nicho, sem querer disputar com os grandes meios. E todos nós devemos pressionar o governo para que concessões de rádio e TV também sejam dadas a movimentos sociais, sindicatos, ONGs etc e não aos mesmos caciques de sempre.

ML: Como o senhor vê a postura da Igreja hoje em relação aos problemas fundamentais do Brasil e da América Latina? A Igreja é mais reacionária hoje do que era há 30 anos?
FB: Há uma vaticanização da Igreja Católica no Brasil, no refluxo em sua atuação social. Infelizmente ela deixou de ser a voz dos que não têm, voz nem vez. No entanto, as comunidades eclesiais de base, as pastorais populares e a teologia da libertação continuam ativas.

ML: Houve uma dificuldade de aceitação da Igreja com a revolução cubana e com Fidel Castro. Na ocasião, seu livro “Fidel e a religião” alcançou grande repercussão em Cuba, no Brasil e no mundo, e contribuiu para esse diálogo. Estamos enxergando nesse momento um confronto parecido na Venezuela. Como vê esse conflito? Já pensou em contribuir com o processo venezuelano com alguma iniciativa parecida?
FB: Estive em Caracas em 2011 e mantive bom diálogo com Chávez. Todo processo revolucionário produz choques com as forças reacionárias, e a Igreja Católica na América hispânica não tem a tradição progressista da Igreja no Brasil.

ML: Como o senhor vê o projeto da direita neoliberal na América Latina hoje? Eles estão perdendo poder ou podem retomar pela via eleitoral ou golpes a controlar grande parte dos Estados?
FB: Há que ficar atento. O imperialismo não dorme no ponto. Vide Honduras e Paraguai. No entanto, as forças progressistas avançam na América Latina e no Caribe, graças a Deus!

ML: Como o senhor vê a pretensão de Aécio Neves ser candidato à presidência em 2014 e o que uma eventual vitória dele pode representar?
FB: Ninguém tira da Dilma a vitória na eleição de 2014.

ML: O senhor recentemente lançou um livro que passa pela história de Minas. Quais as marcas dessa história na nossa realidade atual?
FB: Lancei o romance "Minas do ouro" (Ed. Rocco), no qual descrevo cinco séculos da história de Minas Gerais - do 16 ao 20 - através da saga da família Arienim. Levei 13 anos pesquisando a história de Minas e trabalhando no texto. As marcas atuais dessa história despontam na capacidade de indignação do mineiro frente às injustiças e em sua capacidade criatividade, tanto na política quanto nas artes.

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