Está em funcionamento a Comissão Nacional da Verdade, gerando expectativas, apesar do atraso e de inegáveis limitações. Isso representa uma vitória da democracia, especialmente das pessoas que nunca aceitaram o caminho fácil da omissão. Com o necessário denodo, essa gente soube repudiar a escabrosa avalanche do ódio perpetrado pelos agentes diretos e indiretos da ditadura militar (1964-1985). Se a conquista ocorreu depois de 33 anos da anistia política e 27 após o fim oficial do regime autoritário, é que são mais profundas as raízes do conservadorismo no Brasil que nos demais países da América Latina.
Portanto, temos a obrigação de hipotecar nosso efetivo apoio a essa decisão do governo federal, emperrando as tentativas de desmoralização da Comissão da Verdade. Assim, principalmente com a mobilização popular, ela cumprirá o seu papel. Isto é, poderá destruir quase meio século de mentiras enfiadas goela abaixo da população brasileira. E aí, certamente, descobriremos a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos, além de tudo o que possa contribuir para o completo esclarecimento dos crimes cometidos pelo Estado terrorista ao longo dos 21 anos de trevas.
Mas isso não basta. Precisamos erguer a cabeça e resgatar o orgulho de não consentir a conivência com ditaduras. Então, a punição dos torturadores passa a se constituir uma exigência nacional, considerando ser essa a única forma de apagar a mácula de um passado ignominioso. Sem valorização da vida e da justiça, não construiremos um país digno das gerações futuras. Como lembra Galeano, a impunidade recompensa o delito e facilita sua repetição. Pior: quando o delinquente é o Estado, que viola, rouba, tortura e mata, sem prestar contas a ninguém, emite-se o sinal verde que autoriza qualquer pessoa a violar, roubar, torturar e matar.
Não queremos revanchismo, ao contrário do que temem as viúvas e os herdeiros dos criminosos que tantos sofrimentos causaram ao povo brasileiro. Isso significa afirmar que os torturadores não serão torturados. Reivindicamos apenas justiça, porque a democracia não terá coração de democracia se não for punido quem sequestrou, torturou, estuprou, afogou crianças em banheira, matou, decapitou, esquartejou, lançou corpos ao mar e até os incinerou em forno de usina de açúcar. Crimes contra a humanidade nunca podem ser esquecidos ou perdoados, muito menos por força de lei que não expressa o espírito de valores universais como igualdade e fraternidade.
Em outubro de 1975, no Presídio da Justiça Militar Federal de São Paulo, como um dos três coordenadores participei da elaboração de um documento com precisas denúncias sobre as atrocidades que atingiram os presos políticos. Nele, com muito trabalho e dedicação, conseguimos incluir uma lista de 233 torturadores, num levantamento criterioso feito pelos 35 signatários do longo texto, que foi encaminhado inicialmente à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). E hoje, continuando a cumprir meu dever de defensor dos direitos humanos, transcrevo a relação dos algozes que me torturaram, diretamente, nos dois primeiros dos meus nove anos (1970-1979) nas masmorras do regime fascista que infelicitou a nossa nação.
No Dops-RS (Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul): delegado Pedro Carlos Seelig, inspetor Nilo Hervelha, inspetor Joaquim, Itacir Oliveira, Paulo Artur, inspetor Luiz Carlos Nunes, investigador Pires, “Catarina” ou “Goulart”, major Átila Rhorsetzer, delegado Walter Souza Pinto, Firmino (Lopes Cardoso ou Peres Rodrigues), delegado Walter Sena, Machado, inspetora Walquíria, major Malhães ou Manhães, “Boco Moco”, inspetor Felipe, “Padre”, “Salgadinho”, delegado Marco Aurélio Reis, Ênio Nalich Coelho, inspetor Omar Gilberto Guedes Fernandes, Ivo Sebastião Ficher, inspetor Cézar, “Cardozinho”, “Chapéu”, Mello e Enerino Daixer.
No DOI-Codi/Oban, SP (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna/Operação Bandeirantes, SP): Carlos Alberto Brilhante Ustra, Altair Casadei, Maurício José de Freitas, “Marechal”, “Mangabeira”, “Dr. José”, “Jacó”, “JC” (“Jesus Cristo”), “Oberdan”, “Dr. Tomé”, capitão Dalmo Luiz Cirilo e Otávio Gonçalves Moreira (não consegui identificar todos os verdugos, nem mesmo pelo codinome). No Deops (Delegacia Especializada de Ordem Política e Social de São Paulo): Sérgio Fernando Paranhos Fleury, João Carlos Tralli, Alcides Singillo, Edsel Magnotti e “Carlinhos Metralha” (de muitos outros não descobri o nome ou codinome, mas eram integrantes do Esquadrão da Morte, em sua maioria).
Como sobrevivente, carregando sequelas irreversíveis, assumo a tarefa de jamais me calar sobre o que sofri e testemunhei na ocasião em que pude comprovar a capacidade da resistência humana. A história nos concedeu a oportunidade de lutar contra a tirania, no Século XX, quando mulheres e homens ousaram desafiar a fúria da ditadura militar em nosso país, onde os déspotas tentaram destruir a esperança do povo. Aqui, triunfaram alguns dos mais hediondos horrores já verificados na marcha da humanidade. Houve tortura e assassinato nos porões por onde vomitavam os vermes. Generais, coronéis, almirantes, brigadeiros e agentes civis praticaram excrescências que não podem ser repetidas em nossa pátria. Por tudo isso, defendemos a verdade, cobramos a punição dos torturadores, queremos justiça.
Pinheiro Salles é jornalista e tem quatro livros publicados sobre o regime militar
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